“E como um conto de fada
Tem sempre uma bruxa pra apavorar.
O dragão comendo gente
E a bela adormecida sem acordar.
Tudo que o mestre mandar
E a cabra cega roda sem enxergar.
E você se escondeu,
E você não quis ver.”
In: Jardins da Infância – de João Bosco
p/ Heloísa Lima
Quatro meses após Michele completar nove anos, seus pais separaram-se. A partir de então, iniciou-se uma disputa judicial por sua guarda, só encerrada com a garantia da posse legal por parte da mãe. Esta, mesmo não tendo condições de acompanhar a filha na maior parte do tempo, orgulhosa, decidiu dispensar a ajuda do pai que se propusera a auxiliá-la nos cuidados com a menina.
Na tentativa de aparentar uma autossuficiência que não possuía, a mãe preferiu solicitar ajuda do zelador do prédio para que olhasse a menina enquanto esta estivesse sozinha em casa.
Foi assim que Michele passou a ser molestada sexualmente pelo funcionário que ali também residia com a mulher e os filhos. Ingenuamente, sua mãe entregou-a nas mãos do seu carrasco e esta situação perdurou até ela completar 12 anos – quando, então, mudaram de cidade.
Durante anos, o fantasma daquela relação pervertida assombrou a inocente jovem, interferindo de maneira devastadora em seu desenvolvimento. Ainda que se tenha transformado numa bonita garota, Michele passou a relacionar-se de maneira bastante distorcida e conflituosa com os homens. Só depois de passar por um processo terapêutico, aos 29 anos, pôde compreender as raízes de sua profunda e constante dor e, assim, tentar superá-la.
Por todo esse intervalo de tempo Michele, aparentemente, apagou da memória a violência que a atingiu tão brutalmente. Guardou seu doloroso segredo durante anos e dele envergonhou-se em todos os momentos nos quais as amargas lembranças teimaram em persegui-la, tirando-lhe a paz e a alegria de viver. Jamais partilhou seu drama temendo ser julgada da mesma forma implacável com a qual intimamente se sentenciara.
“Culpada!”
Esse fora seu veredicto desde o início.
A RESPONSABILIDADE DE CADA UM DE NÓS
Esta emblemática história enseja uma inadiável reflexão acerca das responsabilidades envolvidas em situações de abuso sexual que atingem de maneira crescente tantas crianças indefesas em nosso país.
Meu conhecimento e minha experiência clínica me levaram a crer que o silêncio, junto ao desconhecimento e à desinformação, tem sido o maior e mais feroz aliado deste crime.
Quando um adulto se cala a respeito dos perigos e das armadilhas às quais as crianças estão cotidianamente expostas, está colocando-as frente ao mundo adulto, e diante de seus potenciais algozes, de maneira despreparada e desprotegida.
Não conversar abertamente com as crianças a respeito do assunto, no meu ponto de vista, caracteriza uma forma de abandono. Mais que isso: uma certa conivência com a trágica situação que daí poderá advir.
Acima de tudo, cabe principalmente à mãe (ou quem estiver cumprindo este papel) e ao educador, devidamente preparado para isso, a tarefa de explicar às crianças sobre os limites que podem, precisam e devem ser estabelecidos em relação aos adultos, sejam estes integrantes ou não do círculo familiar. Este assunto, aliás, deveria ser tratado natural e corriqueiramente. Sem segredos. Com alertas periódicos em casa, na escola, nos meios publicitários, etc.
Como bem lembrou uma prima, Ana Paula, que reside há muitos anos na Suécia com suas filhas ali nascidas:
“Aqui onde moro tem linhas telefônica exclusivas para crianças que sofrem abuso ou maus tratos dos pais. As crianças, desta forma, tem acesso à profissionais para ajudá-las. Mas as escolas tem um papel fundamental. A voz da criança tem que ser ouvida em primeiro lugar e nem sempre os pais são os melhores amigos dos pequenos, infelizmente.”
Saliento, sobretudo, que não pode existir nenhum profissional, seja de que área for, que se outorgue o direito de “exigir” ficar a sós com um menor. Toda consulta, toda entrevista, todo contato pode ser supervisionado pelo responsável ou tutor legal, sob pena de cair em suspeição.
Também em qualquer tipo de terapia, ao responsável deve ser concedida a autorização de participar ou de observar, ainda que à distância, se o mesmo entender ser necessário. Não podem existir barreiras para este cuidado ou controle.
É preferível o exagero que resguarda do que a liberalidade que entrega.
Quando a mãe conversa com os filhos, de forma franca e honesta, abre um espaço em que se consolida um saudável vínculo de amor e confiança.
Uma maneira muito simples e direta da mãe (ou do educador) informar para as crianças, mesmo as mais novas e imaturas, onde e como a barreira entre ela e o adulto deve ser colocada, é a seguinte:
“— Seu corpo lhe pertence totalmente e você deve fazer o que for de melhor para ele. Pode conhecê-lo, observá-lo, admirá-lo e tocá-lo, mas apenas você, ninguém mais. Nem mesmo eu ou seu pai, seus irmãos, primos, amigos, professores, nenhuma outra pessoa, enfim, tem o direito de tocar no seu corpo sem a sua permissão. E esta permissão você só poderá conceder quando crescer e for mais adulta e experiente. E se um dia algo, porventura, lhe acontecer, alguém lhe tocar de maneira suspeita ou lhe falar coisas estranhas, conte imediatamente para mim porque estou aqui para lhe proteger e orientar.”
Apesar de serem, aparentemente, uma conduta e um diálogo simples, muitos pais sentem-se bastante desconfortáveis em abordar o tema, muito provavelmente porque ele é de difícil trato em suas próprias vidas. Outros preferem protelar o assunto para um “momento mais adequado”, ou “de maior amadurecimento e com melhores condições de assimilação” ou, quem sabe, para NUNCA.
De uma forma ou de outra, os pais que assim agem estarão abdicando da responsabilidade de preparar seus filhos para enfrentar os reveses da vida, deixando uma clareira onde dor e sofrimento poderão ameaçar a delicada e vulnerável existência infantil.
Não existe momento melhor para tratar da questão do que aquele em que a mãe percebe que seus filhos serão deixados alguma parte do dia na companhia de outras pessoas, familiares, amigos ou profissionais.
O momento de agir é agora! Precisamos conversar mais com nossos filhos, falar honestamente das ameaças cruas e reais do mundo para que eles possam estar preparados quando elas surgirem.
A sexualidade, portanto, precisa perder sua condição de intocável tabu para se tornar um tema cotidiano, conversado diariamente, sem medos, sem metáforas de flores e abelhinhas, sem dramas, pois apenas a partir da informação ajudaremos a construir a consciência de que determinadas atitudes de alguns adultos devem ser reconhecidas como inapropriadas e rechaçadas por parte dos nossos pequenos.
Esclarecer que toda a aproximação em locais privados, via de regra, deve ser vista como suspeita não é, como pensam alguns, uma forma precoce de introduzir o tema, mas, sim, uma atitude cautelosa de inocular o cuidado e o senso de proteção no menor desprotegido.
Já ouvi de alguns pais o temor de ‘chamar a atenção’, revelando desnecessariamente um tema ‘desagradável’ que seus filhos não estariam preparados nem dispostos a absorver. Costumo contrapor esse argumento com a seguinte observação:
“ – Ok! Não tome a iniciativa de levantar este tema, muitas vezes tão difícil de lidar. Deixe-o sepultado eternamente nas profundezas da comodidade, se omita de preparar seus filhos para os riscos da vida, permaneça alienado. Desta forma, logo, logo, algum pervertido poderá fazê-lo em seu lugar. Só que de uma maneira cruel e perniciosa.”
Quando uma criança aceita que um adulto lhe toque intimamente é porque este, de alguma forma, aproveitando-se de sua pretensa posição de ‘autoridade’, lhe assegurou que aquele ato era legítimo e que não haveria qualquer restrição de ordem moral ou legal para a sua prática, enfim, nada que o tornasse indigno de ser praticado.
Quando um adulto adota esta prática de maneira sistemática, mesmo que ela represente um terrível desconforto físico e provoque um indescritível sentimento de horror na criança (não raramente acompanhado por uma difusa sensação de prazer), é porque este algoz já conseguiu convencê-la de que naquela experiência está implícito algum grau de cumplicidade de sua parte.
Portanto, ao garantirmos para a criança que não há nada de natural ou de ingênuo numa aproximação íntima entre ela e um adulto, e que, caso isso ocorra, sempre será por responsabilidade deste último – ensinaremos que este crime deverá ser denunciado, independente das ameaças que eventualmente o abusador fizer. Aliás, esta é a prática mais comum entre os pedófilos: ameaçar covardemente a vida da própria criança ou de seus familiares mais queridos.
Não resta qualquer dúvida de que os maiores aliados do abusador infantil são o silêncio e a desinformação.
Deve-se dedicar a devida atenção a este ignóbil comportamento que afeta de maneira aterradora nossos filhos e toda uma futura geração que necessita saber agora se vai escolher a reedição de terríveis hábitos ou a construção de uma sociedade mais fraterna e amorosa.
E este cuidado deve estender-se também (de maneira acentuada) para a utilização da Internet – fenômeno ainda insuficientemente discutido em seus aspectos mais nefastos, posto que grande parte das pessoas prefere enaltecer suas ‘características globalizadoras’, em prejuízo da imprescindível individualização que todo ser necessita para se auto-afirmar construtivamente perante a coletividade.
Em síntese, saindo das trevas do silêncio em direção ao horizonte aberto e honesto da conversa franca e do apoio, nossas crianças finalmente deixarão de sentir-se eternamente responsáveis pelos abusos de que são cotidianamente vítimas. E cada vez menos teremos o desconsolo e a indignação de nos depararmos com este crime sórdido e patológico.
Fonte:
http://psicologaheloisalima.com/2015/05/18/abuso-infantil-o-perigo-sempre-esta-por-perto/#more-1442
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