O morrer nosso de cada dia

p/ Martha Zarza
Desde muito cedo me peguei contemplando a morte de diversas maneiras, acho que o fato de morar em frente a um cemitério ajudou bastante. Mas também porque a vizinhança toda, aos sábados e domingos de tarde, ia passear na praça deste mesmo cemitério, e enquanto os adultos ficavam conversando sentados num banco embaixo de uma das majestosas seringueiras que lá havia, as crianças corriam com seus pirulitos coloridos pra lá e pra cá, atrás de alguma bola, balão ou se exibindo com um ioiô, daqueles de papel laminado, todo colorido. Era uma festa. Tipo: jovens tardes de domingo....

As vezes, quando eu estava triste, ainda criança, eu dava umas escapadelas para dentro dele, é, ele mesmo, o cemitério. Havia uma calma naquelas alamedas tão bonitas, floridas, com suas campas imponentes, outras singelas, passarinhos cantando... eu gostava. E ficava a imaginar quem teriam sido as pessoas que estavam ali, pra quem teriam sido importantes, se foram importantes, que história teriam protagonizado? será que tiveram filhos, será que cuidaram deles? será que foram felizes no amor? Será que alguém as amou? E agora, onde estariam? E conforme o sobrenome eu traçava a trajetória completa da vida da pessoa, as vezes olhava a foto para me certificar que eu estava certa. Eu tentava saber quais comportamentos e atitudes tiveram e se o desencadeamento dos acontecimentos em suas vidas foi o desejado. Mas as vezes, ao olhar o retrato na lápide, eu mudava o destino da pessoa, porque, pensando melhor, os acontecimentos poderiam ter um desfecho diferente.

É verdade que estas reflexões vinham, na maior parte das vezes, de momentos angustiantes, ligados a algum tipo de perda, o que me levava a buscar algo que me confortasse e me fizesse entender melhor alguns acontecimentos. Era uma busca por dias melhores, que só se pode alcançar quando se supera as barreiras que frustram e impedem o crescimento hoje, e que podem ampliar a compreensão das coisas para o amanhã. Algo como morrer um pouco agora para renascer mais forte ali na frente.

Penso que ao desenvolvimento das pessoas é necessário tempo, todo processo de amadurecimento e mudança necessita de tempo para se consolidar: se há vida, deixe viver! Nada mais justo. Com o passar do tempo, a medida que a pessoa vai experimentando as diversas formas de luto (como o fim de uma amizade, a perda de um emprego, uma doença grave, a morte de um animal querido e até mesmo a própria morte física de alguém que amamos, entre outras), é que ela se transforma e cresce como ser humano. Essas situações fornecem uma coleção de repertórios que capacitam a pessoa a elaborar suas questões e conseguir compreender e organizar melhor os acontecimentos de sua vida.

A medida que se experimenta o desconstruir, quando é necessário acabar com algo que construímos um dia, é possível que se ressignifique algumas questões que só se obtém, quando se obtém, vivendo e morrendo simultaneamente. É como se o luto nos fizesse morrer um pouco também para renascer mais forte, como as fênix, animal da mitologia grega que após morrer renascia das próprias cinzas, se reconstruía.

E assim aprendemos a viver, morrendo de várias formas diferentes durante o processo de nossa existência, num viver morrendo, em um contínuo processo de reconstrução.

Como disse, não falo somente da morte refletida no palco da vida, quando a cortina se fecha e não há mais bastidores nem plateia. Falo das sucessivas perdas que temos ao longo da vida e que dão molde a pessoa que estamos nos tornando o tempo todo, assim mesmo no gerúndio. Não somos prontos, somos a transformação, somos muitas possibilidades, e o certo é que a morte em vida sempre traz o novo ou pelo menos uma nova forma de olhar a mesma coisa tantas vezes vista. Embora saibamos que isso nem sempre acontece, também sabemos que adquirir esse comportamento não é nada fácil.

Só os loucos e as crianças”, disse Erasmo, intelectual humanista do século XVI, “não têm medo da morte”. Todos os adultos deveriam ser como as crianças, que encaram o novo como uma grande aventura, uma viagem a terras desconhecidas cheia de novidades. Mas o adulto, já carregado com a somatização dos traumas vividos, receia o desconhecido, não quer perder o conforto do que já conhece para se aventurar num desconfortável mundo de novas possibilidades, mesmo quando esse conforto é insatisfatório.

Infelizmente a maioria dos adultos não quer perder nada, sofre com seu apego mas permanece no seu conhecido quadrado desconfortavelmente confortável, e deixa de aproveitar as múltiplas chances de se ‘atirar à morte’ que a vida oferece. Deixando de viver morrendo para morrer vivendo. O pior de tudo é que esse morrer vivendo pode mesmo acabar matando, tipo morte morrida mesmo, antecipando a morte física.

Jung disse:
Não desejar viver é sinônimo de não querer morrer. Vir a ser e deixar de existir são a mesma curva ... Quem quer que não acompanhe essa curva permanece suspenso no ar e fica paralisado ... só permanece vivo quem está disposto a morrer com a vida”.

Entre “a poda do velho e a maturação do novo há um período de luto negro”, segundo Sallie Nichols é preciso vivê-lo, são estágios da longa jornada para o auto-conhecimento.

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